Flip 2019 | “A Canudos de hoje”
“Tróia de Taipa”, modo como Euclides da Cunha chamou Canudos em “Os sertões“, foi também o nome que o próprio historiador José Murilo de Carvalho, um dos mais prestigiados intérpretes do Brasil, escolheu para a décima mesa desta 17ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip. Em sua fala, Carvalho deixou claro que vê o momento histórico retratado por Cunha como um resultado dos erros cometidos na proclamação da primeira República. A partir desse ponto, desta Troia do sertão brasileiro, refletiu sobre passado, presente e futuro, junto das mediadoras Heloisa Starling e Angela Alonso.
“A República falava em autogoverno no Brasil, em mandar o rei embora. A ideia é que iríamos nos governarmos a nós mesmos. Mas quem era esse nós? Essa resposta veio depois da primeira legislação eleitoral com a proibição de votos para os analfabetos”, disse Murilo de Carvalho. Para ele, o povo não fazia parte desse “nós” vendido pelos republicanos da época. “Dez por cento das pessoas votava durante o Império. Esse número caiu para cinco por cento com a República. E o que aconteceu com o povo? Canudos. Esse é o pecado original da República brasileira”, completou.
Murilo de Carvalho também resgatou a noção de patriotismo através da personagem de seu novo livro, lançado na Flip, “Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte“. “Jovita era uma piauiense de 17 anos que se passou por homem porque queria lutar no Paraguai para vingar as brasileiras do Mato Grosso que tinham sido violentadas por paraguaios”, contou o historiador. Esse sentimento de Jovita, segundo ele, ficou limitado àquela época, contudo. E, como resultado, a noção de independência, anos depois, acabou circunscrita ao Rio de Janeiro e às capitais litorâneas, sem criar um sentimento de identidade nacional.
Por fim, nesta mesa que uniu análise histórica e política, as moderadoras Starling e Alonso perguntaram sobre o papel atual do Exército na vida brasileira, aproveitando o ensejo de outro lançamento do autor nesta Flip, Forças armadas e política no Brasil. Para o historiador, pela própria Constituição brasileira, o Exército tem tido um papel de tutela, o que é danoso para a democracia. “É possível ter forças armadas democráticas? Isso não existe, o que existe é a força armada que aceita as regras da democracia. A parte que aceita as regras é profissional, a que não aceita é política”, disse Murilo de Carvalho.
Fazendo uma previsão para os anos vindouros, o historiador ainda lamentou terminar a mesa de forma pessimista, mas deixou claro não ver muitas saídas para a crise social atual. “Parece que estamos diante de uma tsunami. Como vamos incorporar os 13 milhões de desempregados, mais os milhões em subempregos e ainda os que não são mais empregáveis por causa da tecnologia?”, questionou. “A Canudos de hoje são esses milhões de brasileiros que estão de alguma maneira excluídos.”
Imagem: Walter Craveiro/Flip/Divulgação