Espetáculo “Branco – O Cheiro do Lírio e do Formol” em temporada no CCSP

Espetáculo “Branco – O Cheiro do Lírio e do Formol” em temporada no CCSP

Com texto de Alexandre Dal Farra e direção do próprio dramaturgo e de Janaina Leite – que também está no elenco ao lado de André Capuano e Clayton Mariano -, o espetáculo Branco – O Cheiro do Lírio e do Formol aborda tema polêmico, na tentativa de criticar o racismo naturalizado do branco a partir do seu próprio ponto de vista.

Dal Farra explica que “não se trata de uma peça sobre racismo, mas sim, sobre o lugar de privilégio que o branco ocupa em uma sociedade racista como a brasileira”. Janaina Leite completa que a peça lança a questão “há um lugar em que o branco pode ocupar nesse caminho para a desconstrução do racismo estrutural? Como podemos ocupar um lugar autocrítico nessa estrutura que nos beneficia?

Sinopse
Uma família de classe média, formada por um menino, seu pai e sua tia, vive um cotidiano comum, até que alguns acontecimentos externos forçam essas pessoas a terem que lidar com o que existe do lado de fora da casa. Essa trama lacunar e incompleta é contada de forma fragmentária alternando com uma outra camada narrativa que conta o próprio processo de criação da peça – trazendo as diversas tentativas de estruturar um olhar autocrítico, do próprio branco, sobre o seu racismo naturalizado. Uma terceira camada, ainda, traz fragmentos de outros textos – foram três ao todo – escritos ao longo do processo de criação.

O espaço onde a peça se passa é formado por elementos pertencentes ao universo privado, sem uma unidade que gere a sensação de um lar. Alguns poucos móveis ocupam o espaço cênico de maneira descuidada e espalhada. “Existe um gesto geral na concepção cênica e, principalmente, em relação ao espaço, que aponta para o fato de que o branco já o possui. O uso descuidado, espalhado, do palco é um signo do seu privilégio formativo. Usufruem daquilo que lhes pertence com a tranquilidade de herdeiros – ainda que sejam herdeiros de bem pouca coisa, quase pobres, mas ainda assim, portam-se como herdeiros, este é o seu ponto de partida”, explica a atriz e diretora Janaina Leite.

A narrativa do processo de criação da peça mostra as próprias dificuldades e contradições que envolveram a sua criação. “A certa altura, ficou claro que a única forma de dar conta das contradições que o próprio gesto de criar uma peça sobre racismo envolvia, sendo branco, era incluir na peça a própria escrita dela e as dificuldades que ela envolveu”, diz Dal Farra.

Trata-se de uma aproximação do tema racismo, por parte de brancos, em um movimento de autocrítica. “A peça não procura de forma alguma, falar pelo outro, nem muito menos dar voz ao negro, mas sim, estruturar um olhar crítico do branco sobre si mesmo para desconstruir-se enquanto agência reprodutora do dispositivo do racismo, naturalizado e estrutural”, continua Dal Farra.

Tal movimento parece ser inédito no território artístico, ao menos no Brasil, mas na seara teórica, já há antecedentes. A teórica brasileira Lia Vainer Schucman, por exemplo, ao trazer para o país o conceito de branquitude crítica, já largamente utilizado nos EUA e em outros países (whiteness), propõe justamente estudar as formas como o racismo é um tipo aprendizado cultural.

Trata-se, portanto, de falar sobre a estrutura racista, sobre a sua naturalização, sobre a forma como o branco se forma e forma o seu olhar objetificante sobre o outro, o negro, e de criticar esse olhar de dentro dele mesmo. Essa autoanálise crítica, no entanto, corre sempre o risco de se transformar em um tipo de reafirmação das questões do branco em detrimento das questões do negro, por isso os vaivéns intensos e profundos que o processo de criação da peça sofreu.

O território é polêmico, por isso as dificuldades e riscos que a abordagem envolve levaram à necessidade de que o próprio processo de criação fosse incorporado ao resultado final da obra. “Nesse sentido, é impossível fugir do fato de que a nossa própria atitude de parar para pensar sobre a nossa branquitude, de dentro da nossa posição privilegiada, é algo que não anula o privilégio imediatamente, mas, utiliza-o para destruir a ele próprio”, coloca Janaina.

As três camadas não se comunicam diretamente entre si. “As cenas da família se estruturam a partir da falta. É como se algo não estivesse ali o tempo todo”, diz Dal Farra. À medida que a narrativa de processo avança, as cenas da família também sofrem uma pressão crescente, de uma força externa, que, no entanto, não chega a alterar realmente o seu cotidiano. Tal movimento é acompanhado por uma série de acontecimentos narrados na outra camada, que reproduz o processo de criação.

“Lendo o texto, percebemos que as cenas da família são como reflexos deformados do próprio depoimento sobre o processo”, diz o ator e criador André Capuano. A terceira camada que estrutura a peça é formada por trechos do primeiro texto escrito por Dal Farra. “Escolhi as partes do primeiro texto que, de certa forma, davam munição para que toda essa tentativa de criação fosse mostrando os seus próprios buracos”, pontua o autor e diretor.


Concepção da montagem
O mote da criação da peça também poderia ser pensado como um desconforto com um outro privilégio, este, anterior à peça em si: o privilégio de poder não fazê-la. É a partir de um desconforto com a situação vantajosa de poder não pensar em nada disso, que o dramaturgo Alexandre Dal Farra escreveu a primeira versão do texto, e convidou a atriz Janaina Leite para criar e dirigir a peça junto com ele. “Uma questão central foi pensar sobre atores que não participassem apenas como atores, mas sim, que estivessem dispostos a colocar-se em xeque, a colocar as suas próprias posições em xeque, a questionar-se profundamente”, diz Janaina. “Pensamos em pessoas que pudessem trazer uma camada performativa forte para o texto, e que entrassem como co-criadores da obra”, completa Dal Farra. Os dois convidaram, então, os atores e diretores André Capuano e Clayton Mariano, ambos já parceiros antigos, para comporem a equipe de criação.

A partir daí, criou-se um ambiente de criação que se estrutura de uma forma que não segue a receita do processo colaborativo tradicional, já que parte de um texto pronto, mas onde os olhares de todos participam do resultado. “Se o texto foi sempre escrito e reescrito pelo Alexandre (são pelo menos três textos completos inteiramente diversos entre si), nós quatro sempre discutíamos de forma conjunta, tanto as implicações éticas das propostas, quanto as possibilidades de encenação e de levá-los para a cena”, explica André Capuano.

“Como éramos três atores brancos em cena, e um dramaturgo e diretor branco do lado de fora, era crucial que estivéssemos profundamente envolvidos com a questão como um todo, e a nossa postura propositiva do ponto de vista da encenação e da criação da peça foi uma maneira de não estarmos ali para falar sobre questões externas a nós, mas sim, de fazê-las passarem efetivamente pelos nossos corpos, pelas nossas vidas”, pontua o ator e criador Clayton Mariano.

Sobre Alexandre Dal Farra
Dramaturgo, diretor e escritor, indicado e vencedor de diversos prêmios como Prêmio Questão de Crítica, Prêmio APCA, Prêmio Aplauso Brasil, Prêmio Governador do Estado de São Paulo e Prêmio Cooperativa de Teatro, foi vencedor do 25o Prêmio Shell de melhor Autor pelo espetáculo Mateus, 10 (2012). Seus textos foram apresentados em diversas cidades brasileiras, além de Alemanha e França. Lançou, em 2013, o seu primeiro romance, Manual da Destruição, pela editora Hedra, considerado pelo escritor Ricardo Lisias “uma das melhores obras da literatura brasileira recente”. Seu texto, Abnegação 1, indicado ao prêmio APCA de Melhor Texto, está em fase de tradução para publicação em Francês na editora Les Solitaires Intempestifs.

Serviço:
BRANCO: O CHEIRO DO LÍRIO E DO FORMOL – De 7 de abril a 21 de maio – Sextas e sábados 21h e domingos 20h. Ingressos: Pague quanto puder – De R$1 a R$5 (somente na bilheteria a partir de 2 horas antes da peça) e de R$10 a R$30 pelo Ingresso Rápido. Atenção: Dias 28, 29 e 30 de abril não haverá espetáculo, excepcionalmente.

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO – Sala Jardel Filho. Telefone – 11 3397-4002.
R. Vergueiro, 1000 – Paraíso – São Paulo. Capacidade: 321 lugares. Acessibilidade.